foto che guevara

O MITO EM XEQUE

Documentário de Guardia deita um olhar suspeito sobre a vida de Ernesto “Che” Guevara, mas cumpre o que promete com notável rigor.

Por, Eduardo Silva.

“Fuzilamentos? Sim, fuzilamos! E vamos continuar fuzilando quanto mais forem necessários. Nossa luta é uma luta até a morte!”,

sentenciou o então Comandante Ernesto “Che” Guevara durante a 19ª Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 1964. As palavras, que estarreceram dezenas de líderes mundiais da época, tornam a ressoar uma vez mais durante os primeiros minutos do documentário Guevara: Anatomia de um Mito. O documentário cubano de 2008, dirigido por Luiz Guardia, diz muito de si mesmo já em sua sequência inicial. Nela, a fala beligerante de Guevara irrompe solitariamente. Nenhuma imagem a acompanha. O espectador, cegado pela tela às escuras, não é capaz de afirmar a quem pertence a voz misteriosa e autoritária. O dono dela revela-se mais tarde, na outra extremidade da película. Ainda assim, mesmo só e destituída de contexto, a frase funciona como epígrafe à história que será narrada. A partir dela, todos os fatos apresentados posteriormente tornam-se ecos desse mordaz axioma guevariano.

Guevara: Anatomia de um mito possui exatos 71 minutos de duração. É uma produção modesta que ousa perturbar o sono de uma das figuras mais exaltadas do século passado – o homem de atitudes controversas, cujo legado divide opiniões até os dias de hoje. Para muitos, Ernesto Guevara de La Serna (1928-1967) é saudado como um herói, um líder, um mártir da liberdade; para outros, o guerrilheiro de hábitos bárbaros, responsável por enviar a mira do fuzil dezenas de homens, mulheres e até crianças, não é mais que o “esqueleto de um mito que teceu os rumos da história”. É justamente sob essa ótica que a produção de Guardia disseca o seu protagonista. E com escassa sutileza, diga-se de passagem.

Guardia não disfarça a sua abordagem unilateral do ícone da Revolução Cubana. A palavra que dita o compasso de sua película é sugestiva: “fusilamiento” aflora exaustivamente aos ouvidos do espectador, emoldurando o quadro pintado diante de seus olhos. Muito destaque é dado às cruas execuções orquestradas por Ernesto Guevara. Injusta, cruel e sanguinolenta, essa prática administrada irracionalmente pelo guerrilheiro, levou a cova não apenas opositores do regime socialista, mas, também, cidadãos cubanos inocentes, obrigados a encarar o fuzil por razões bobas, quiçá pueris, que o “herói da liberdade” inventava a seu bel-prazer. Com esta moldura, Guevara é retratado como um criminoso sádico, um indivíduo doentio que se comprazia ante o sofrimento alheio.

A maioria das testemunhas (senão todas) acabam engrossando o caldo, por assim dizer. Os ex-combatentes e companheiros de Che ressaltam o seu histórico de insubordinação. No muito que é dito a seu respeito, prevalece a imagem do sociopata desobediente que caçava quaisquer motivos fúteis para puxar o gatilho. Assim, nos dizeres de uns e no silêncio de outros, cristaliza-se a noção de que Guevara era um lobo solitário, já que seus colegas não compactuavam de suas ações violentas. E é justamente diante deste aspecto que o espectador deve saber apurar seu senso crítico. O fato de se apresentar um hall tão extenso de ex-guerrilheiros e revolucionários, que atuaram diretamente sob o calcanhar do comandante Ernesto Guevara, e nenhum deles nem sequer insinuar que concordou com, pelo menos, uma de suas práticas, é no mínimo suspeito. Ao que parece, todos desejam lavar as mãos, isentar-se de qualquer envolvimento com ele. A pergunta que prevalece é esta: será mesmo que a agulha da bússola moral cambaleou única e exclusivamente com Che Guevara?

Afora o olhar enviesado que deita sobre a figura histórica do guerrilheiro, político, escritor e médico, Ernesto Guevara de La Serna, a filmografia não escapa ao objetivo proposto em seu título e cumpre a anatomia de um mito com rigor e devoção. É provável que sua assombrosa parcialidade seja antes uma consequência do processo de dissecação do tal “esqueleto” que maculou a história. Pois, de fato, se despojada a grossa camada de ufanismo e merchandising que recobre o ídolo Guevara, que restará?

Se essa pergunta lhe inquieta, sugiro que dê uma olhada em Guevara: Anatomia de um mito, disponível no YouTube.
Talvez, a resposta esteja lá.

Título: Guevara: Anatomia de um Mito.
Direção: Luiz Guardia.
Produção: Pedro Corzo.
País: EUA/Cuba.
Ano: 2008
Nota: 8.5


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